Edinalva

Edinalva é uma mulher negra, mais de 60 anos, sentada na última fila de cadeiras da grande sala de espera do ambulatório do IBCC, quase vazia, fazendo o seu lanchinho enquanto o médico não chama. Eu estou na fileira logo à frente, triste, triste. Viro para trás, em busca de uma conversa que me distraia de mim. Ela usa um vestido marrom florido, aparentemente sem mangas, com um casaco marrom por cima. A bolsa enorme também é marrom.

Começamos a conversar… Ela guarda o lanche na bolsa e me conta conta que acabou de fazer cirurgia, que vem ao hospital todo dia para fazer curativo, teve um tumor na mama, também será atendida pelo Dr. Daniel e que está muito gripada [e sem máscara]. Lembro da minha longa gripe, de mais de 15 dias, que exigiu até tomar antibióticos pra conseguir sarar. Fico aliviada por estar com a minha máscara super bem colocada, me protegendo de vírus alheios.

Ela pergunta se tomei a vacina e eu digo que sim. Ela diz que também tomou e solta a pseudobaboseira corrente de que basta a gente tomar vacina para ficar gripada. Explico que não é bem assim, que a gente pode já estar contaminada quando tomou, que a vacina protege só contra alguns tipos de gripe e tem muitos outros à solta.

Pergunto se ela entende como as vacinas funcionam. Ela diz que não. Explico que na vacina de gripe ou covid, que são vírus muito mutáveis, que mudam muito rápido, estão pedacinhos destes vírus que ensinam o nosso sistema de defesa a matar os vírus inteiros. E que a vacina só ensina a matar alguns tipos, os já conhecidos, mas não impede que a gente faça contato com uma mutação nova e adoeça.

imagem do site https://www.scienceinschool.org/pt-pt/article/2021/vaccines-in-the-spotlight/

Ela fica feliz com a explicação, o rosto se ilumina e me agradece. Eu explico que explicar coisas é algo gosto muito de fazer. Ela conta que vive só, mora na Água Funda numa casa grande. Intuo que ela deseja mudar de lá. Ela confirma. Vamos conversando e pelo jeito que fala eu adivinho: é evangélica. E também percebo que ela não entende direito qual é a sua doença, o tratamento à frente.

À certa altura da conversa percebo que ela está só, sem uma rede de apoio certa, pessoas confiáveis com quem possa conversar sobre o que está passando. Peço o celular e que ela abra o Whatsapp. Encontro o seu perfil e deixo anotados dois endereços: Casa Lavanda, a comunidade criada pela Ana Mi que tem sido um dos meus lugares de paz, e o Oncoguia que tanta informação boa me trouxe. Explico como usar cada um dos endereços, meio que esperando que ela consiga usar os recursos preciosos que estou indicando. A esta altura ela diz que acha que não é bom saber muito sobre a doença, que é melhor suportar, enquanto coloca a mão direita sobre o curativo que está em cima de seu seio esquerdo.

Lhe pergunto se dói e ela confirma. Ofereço o analgésico e vem mais uma platitude: a gente já toma muito remédio, eu evito o analgésico. Aproveito saber que ela é evangélica e dou uma trucada: Jesus sofreu na cruz pra gente não sofrer, a gente já sofre bastante, não precisa sentir dor. Se tem analgésico, toma. Edinalva pega o seu comprimidinho e vai lá tomar, enquanto eu tomo mais uma golada de água da minha garrafa.

E então o Dr. Daniel abre a porta me oferece um sorriso meio triste e lá vou eu para a minha consulta mensal, com uma lista enorme de coisas pra conversar, e me despeço de Edinalva rapidamente, lhe desejando uma rápida recuperação e esperando que venha buscar mais informação e que a roda do conhecimento lhe dê a possibilidade de ser ativa no seu tratamento.

Pacientes ativas e responsáveis? Nem sempre

Lucia Freitas e Sandra Gonçalves
Lucia Freitas e Sandra Gonçalves, duas pacientes ativas e responsáveis

Nos ambientes em que circulo, seja no Oncoguia, na Casa Lavanda ou na Casa do Cuidar, a ideia é que nós pacientes – e também os nossos cuidadores – sejamos responsáveis e ativos dos nossos tratamentos. Isso significa saber não apenas os remédios, efeitos colaterais e caminhos do tratamento, mas também quais são as nossas prioridades e vontades.

Em geral, os médicos não estão nem aí para esse detalhe. Vontade? Prioridades? Nananina… Paciente é pra fazer o que eu mandar. Como a gente diz nas redes: #SQN (sóquenão)

Dureza é que pra fazer isso, além de ter o dom de perguntar tudo – e entender as respostas, que em geral são em mediquês – a gente também precisa saber qual o raciocínio e objetivo do tratamento. E isso nem sempre fica muito claro. Nestes últimos dois anos, desde o diagnóstico, eu estou navegando meio sendo arrastada pelos médicos. A sensação é que estou sendo levada em direção a ter mais vida sem muita clareza sobre o caminho e seus limites.

Há um grande contingente que entra e sai do consultório em 5 minutos, levando os pedidos de exames, quimioterapia, sabe-se mais o quê sem nem perguntar o que está acontecendo ou o porquê, se existem alternativas possíveis ou se ela pode se recusar ao tratamento. São estas pessoas que precisam ser educadas a fazer perguntas, entender, dar um passo além e abraçar a realidade. No dia 16, eu tentei ajudar a Edinalva neste sentido. Por enquanto só consigo assim, no um a um. Quem sabe logo logo não aprendo a entregar esta educação de forma mais organizada e ampla.

Foto do destaque: Bernd ? Dittrich on Unsplash


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