Etiquetas de Pacientes com Câncer

a foto mostra um trecho de livro que diz: profissionais da saúde, mas também no mundo dos que não têm a doença. Enxergar o que acontece com uma pessoa que atravessa a vida acompanhada por uma doença assim é muito mais complexo. A verdade é que o câncer não tem que ser visto como algo que precisa ser excluído da vida, mas como parte dela. A vida é e sempre será muito mais do que uma doença.
Trecho do prefácio de “Enquanto eu respirar”, de Ana Michelle Soares

São centenas delas. Coladas às blusas, vestidos, casacos. Cada uma tem as seguintes informações: Nome (do paciente esse é grandão e antes dele tem um número), data de nascimento, número do prontuário, número do atendimento, SUS –SUS único, nome da mãe, matrícula, tipo de atendimento, nome do médico, CRM, data do atendimento e emissão. Pra fechar, um código de barras.

Essas etiquetas servem para mostrar que a portadora – ou portador – está em atendimento. Como estamos no Instituto Brasileiro de Combate ao Câncer, o IBCC, e estas pessoas têm ou tiveram câncer. Todas estão em tratamento. Cada uma carrega um assombro, uma esperança, a tentativa de cura – ou de viver só mais um pouquinho.

Numa quinta-feira, indo fazer o exame de sangue pré-quimioterapia, encontrei a Fernanda no ponto de ônibus. Ela tinha acabado de sair e esqueceu totalmente do detalhe em sua roupa. Eu avisei, ela tirou, dobrou as partes colantes e… jogou no chão.

O que me chama a atenção há muito tempo é que muita gente esquece de arrancar a etiqueta da roupa. Ok, muitas vezes a gente sai atordoada. Seja por conta da consulta, da quimioterapia, do exame.

Sim, a calçada na porta do IBCC em geral tem diversas destas etiquetas coladas nela.

Na saída avisei mais duas mulheres que também haviam esquecido. Esperando a chance de travessia da Radial Leste, conheci a Maria do Carmo. Uma mulher forte, simples, que está feliz de sair do Jabaquara para tratar seu câncer na Mooca. Quem arrumou a vaga foi o seu patrão, que é médico por lá. Vamos conversando. Ela diz se sentir só. A convido para vir para a casinha, para participar das Rodas de Conversa do Oncoguia.

Conjunto de pessoas, em torno da placa do IBCC,  todas com camisetas rosa choque com o símbolo do Câncer no Alvo da Moda (um Alvo em Azul e preto)
Foto minha, no IBCC, Outubro Rosa

Cuidados e saúde no SUS, um caso de amor e ódio

Rostos, histórias, jornadas e esperanças que ficam em etiquetas. Estejam elas cuidadosamente guardadas, como faço com as minhas, ou jogadas no lixo, nas calçadas, no fundo da bolsa. No Ambulatório do SUS a gente encontra o resultado de um sistema de saúde que funciona ­ (pero no mucho). Às vezes se entreouve aquela pessoa que luta por atendimento quando o câncer volta, mas é num órgão diferente, do qual o IBCC não cuida.

Eu tenho uma tara: apurar histórias na sala de espera. Cansei de ficar muito tempo por lá olhando vídeos, fotos, a vida perfeita das outras pessoas na rede social. Então eu converso. Se o papo chega em “Deus me curou” eu já dou um jeito de conversar com outra ou outro. Religião? Tô fora.

Descobri uma coisa: a maioria das mulheres que têm ou tiveram câncer de mama não sabem qual o tipo de câncer. Muitas não sabem dizer qual remédio usam ou usaram. Claro, a preocupação com a queda do cabelo está lá, revelada em touquinhas, lenços, perucas e laces. Tem alguns de cadeira de rodas, uns poucos de bengala, muita gente com cara de cansaço.

Imagino como essas mulheres transmitem a informação do seu tratamento no serviço de saúde. Porque o que nos acontece no IBCC fica por lá. E o médico do postinho, da UPA ou do AME não tem acesso.

Somos atendidas teoricamente pelo mesmo médico ou médica. Em teoria. Para evitar que criemos laços profundos com as pessoas que deveriam cuidar da nossa saúde, há uma rotação de nós entre os estagiários, não, pera, residentes. E o paciente que se vire para conseguir toda informação. Mesmo quando a gente pergunta, as respostas são rasas, ruins, numa língua chamada mediquês.

Eu só comecei a me sentir cuidada de verdade quando diagnosticaram a metástase e fui atendida por uma médica boa, a Dra. Thaís. Que durou exatos 12 meses comigo – ela receitou a quimioterapia e saiu andando. Agora estou com o Dr. Daniel, com quem desenvolvi uma boa relação e que tem dado certo, apesar de eu sempre estranhar a ausência de exames físicos. Para compensar, Dra. Chris, a paliativista não falha: mede pressão, ausculta, apalpa. E escuta tudo. Ou seja, só me sinto cuidada, no IBCC, há dois anos.

De volta às etiquetas

young women smiling and clapping their hands with a cartoon that shows HOPE written in pink
Photo by Thirdman on Pexels.com

As etiquetas são a minha diversão. Elas me informam os nomes das companheiras nas salas de espera. Passamos muito tempo nelas, seja esperando a consulta como os exames. É comum acontecerem conversas e conexões. Às vezes eu escuto “a Dra. Fulana é ótima” e me espanto.

As etiquetas têm esse dom de me revelar meus preconceitos. O primeiro deles é que toda a equipe médica está lá seguindo o roteiro, contando as consultas em minutos, sem olhar com atenção para quem está à sua frente. Somos os corpos anônimos com os quais eles treinam, a quem oferecem meias soluções, pouca ou nenhuma informação.

Outro que elas me mostraram: detesto da palavra deus. Ela me provoca uma raiva sem tamanho! É uma reação visceral e muito pessoal. Com o tempo aprendi a não expressar a raiva e me afastar dos fanáticos. Mesmo assim, como podem imaginar, é uma palavra frequente por lá.

Por fim, as etiquetas também me enternecem. É doce ver filhas cuidando de mães. E vice-versa. Há também os filhos e os companheiros. Às vezes o lugar é pontilhado por minúsculas expressões de amor. E também acontece dos médicos que abrem as portas do consultório e sorriem para o paciente que chamaram. São poucos, mas existem uns.

Depois de tanto encontrar etiquetas por lá, seja grudadas nas roupas como nas pulseirinhas, me dei conta da razão delas atraírem os meus olhares. Elas são formas, como se através delas fôssemos encaixadas no “lugar certo”. Será? Só espero que cada etiqueta encontre a sua cura – ou o melhor tratamento para que não sofram.

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